quinta-feira, 26 de março de 2009

Espelho

-É por isso que ninguém gosta de você!
Você sempre acha que sabe mais do que os outros
-Ele me diz.
Ele diz e o faz sobre si mesmo
E, para si, são suas palavras

-Se o teu cantar fosse veloz
Fosse voraz o seu teu sentir
Fosse maior o teu saber,
Quem sabe então, eu mesmo
poderia te ouvir
Volta ao centro de suas dores!
O que te faz pensar assim?
Quem é que te faz saber?
Quem sabe que você sabe?
Sabe que ninguém sabe?
Saiba: Ninguém sabe -

-Cala a boca!
Você não sabe de mim
Pensa que sabe.
-Ele diz pra mim.
Tonto, bêbado, inerte
Preso em si, preso em mim
Eu bebo... Bêbado,
Apago a luz e não vejo nada.
Quebro teu vidro e teu aço.
Não te vejo mais.
Não o vejo mais...
Não me vejo mais...
Não vejo mais

quarta-feira, 18 de março de 2009

Fita Verde no Cabelo ( ROSA, Guimarães)

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita - Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar fambroesas.
Daí, que, indo no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido, nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então ela, mesma, era quem dizia: "Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou". A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto passa por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
- "Quem é?"
- "Sou eu..." - e Fita Verde descansou a voz. - "Sou sua linda netinha, com cesto e com pote, com a Fita Verde no cabelo, que a mamãe me mandou."
Vai, a avó difícil, disse: - "Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus a abençoe."
Fita Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar apagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: - "Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo."
Mas agora Fita Vede se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
- "Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!"
- "É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...." - a avó murmurou.
- "Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados".
- "É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta..." - a avó suspirou.
- "Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?"
- "É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha...." - a avó ainda gemeu.
Fita Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: - "Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!..."
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

sexta-feira, 6 de março de 2009

As Três Metamorfoses do Espírito ( Para o grande amigo Jonathan ler)

Universidade Federal do Rio de Janeiro

CLA – Faculdade de Letras – Departamento de Ciências da Literatura

Teoria Literária – Professora Maria Lucia Guimaraens

Turma LEI

As três Metamorfoses do Espírito

Usando um cérebro superhumano, Nietzsche desenvolve a apresentação das três metamorfoses do espírito, que classifica como o Camelo, o Leão e a Criança. Elas ocorrem quando o homem, cansado da comodidade e da monotonia de sua existência (camelo), resolve libertar-se e entra então num período de rompimentos, de desapegos e entra numa luta contra si mesmo (leão) para, então, recriar a vida. Chegando assim, ao ponto onde tudo que é velho pode tornar-se novo (criança).

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche coloca a sua submersão no universo das inquietações de todos os seres e expõe a necessidade da transformação. Visto que o espírito traz em si todo peso da sua existência e não se permite questionar, e sem o questionamento dos verdadeiros motivos de sua existência, é impossível evoluir, criar, crescer, acontecer. Repleto de vontades o espírito fica estagnado e sem forças para lutar contra os dogmas que a sociedade em que vive lhe impõe. Nesse ponto, o espírito se vê forçado a provocar uma mudança, sobrecarregado pelo peso de sua existência, que vaga como um camelo carregando seu fardo de viver sem existir, de existir sem viver. A voz que grita em sua consciência não pára de exclamar: Tu deves!

Quando provoca uma cisão com tudo que o prende ao seu peso mórbido de existência, o espírito se torna forte, decidido, com vontade própria. Ele deixa de ser um camelo no deserto e passa a ser o Leão que ruge. Aquele que rasga com seu passado e está na busca do novo. Aquele que quer ter voz, que quer ser alguém. Dono de suas próprias decisões. Participar ativamente da vida. Viver, existindo. Existir, vivendo. Nesse momento, a voz a que ouve, diz: Eu quero!

Depois de romper com sua corcova e assumir as rédeas do cavalo de sua existência, o espírito parte numa busca incansável por seu objetivo: tornar-se algo bastante simples e sutil, algo que possa estar sujeito novamente ao processo da criação. Quer tornar-se um ser melhor, a criança. Precisa da inocência da criança para voltar ao ponto de partida e criar de novo. Um círculo infinito de criação. Nesse ponto a voz lhe sussurra: Eu sou!


Análise do Conto Fita Verde no Cabelo de Guimaraens Rosa



O objetivo deste texto é apresentar a relação entre a obra belíssima de Guimaraens Rosa com o ponto da Disciplina Teoria Literária I, ministrada pela Professora Doutora Maria Lúcia Guimaraens, no qual ela trata das Três Metamorfoses do Espírito da Obra de Nietzsche, Assim falou Zaratustra.

Pontuarei os momentos do texto que Rosa faz menção as transformações a que o espírito humano é submetido.

Comecemos pelo Camelo...

O texto começa com a colocação de que existia uma vila em algum lugar, que era inexata. Não havia importância nem no tamanho nem na localização desta. Quando diz que os velhos velhavam, os adultos esperavam e as crianças nasciam e cresciam, apresenta-se o camelo. Que existe e carrega nos ombros o fardo pesado de sua existência. Na vila, todos tinham juízo, todos tinham se acostumado com o seu estado, exceto uma menininha. Aqui começa a apresentar-se o Leão.

Todos na vila seguiam um mesmo modelo de vida. Essa menina resolve, simplesmente, não ter juízo. Acontece que quando sua mãe lhe envia para a casa de sua avó, ela leva consigo pedaços do camelo em seu agir: Leva um pote de doces, um cesto, ainda vazio, para buscar framboesas no caminho; aparentemente vai seguir o mesmo caminho de todos. Aparentemente...

Dentro de si, Fita verde pensa: “Vou seguir o caminho que mamãe ordenou.” A voz de sua consciência grita o Tu deves!

No caminho pelo bosque, o caminho que os lenhadores já haviam preparado, matando o lobo, deixando tudo calmo e comum, sem lobo e sem perigo, um “deserto” perfeito para o camelo atravessar, fita verde decide como o Leão romper com sua corcova. Toma um caminho diferente, um caminho mais longo, mais trabalhoso. Mas agora ela tem vontade.

Rosa diz que as borboletas que divertem a menina não estão nunca em buquê e nem em botão. Aquilo que é natural está sempre no processo de criar, de nascer. Não se prende ao nascido, mas ao fato de nascer, de acontecer, de realizar. O processo da vida acontecendo naturalmente.

Fita verde se encanta neste caminho. Vive sua vida, largando para trás até sua sombra. Não quer o resto do que a prendia a gozar do mesmo juízo de seus conterrâneos. Agora a voz de sua consciência lhe conforta: Eu quero.

Ao chegar à casa de sua avó, a menina bate à porta. Identifica-se. Embora soubesse que era diferente, que havia conhecido o caminho do outro lado, precisava revelar-se da forma que os outros a conheciam: a menina com cesto, pote e fita verde no cabelo, do jeito que a mãe lhe enviara.

No diálogo com a vovó, que a mandara entrar, a menina se espanta em ver suas condições. A avó lhe diz para entrar correndo, enquanto ainda houvesse tempo. Ela sabia que estava acontecendo algo de ruim. Fita verde ao entender a gravidade da situação, percebe-se sem a fita verde no cabelo. Percebe que realmente mudou. Que não tem mais sua característica de comum. Fita verde finalmente está pronta para crescer, para mudar, para evoluir, para criar algo novo. Sua voz diz: Eu sou! Ela aprende com a morte da avó, que a vida é efêmera, que precisa existir e está apta a ser algo que nunca fora. A Criança é a matéria prima para o tudo. A criança tem a inocência necessária para a criação. No vazio encontra-se toda a matéria prima necessária para o novo ser acontecer.